domingo, 7 de junho de 2015

Os Ratinhos e a Granja do Marquês

Ratinhos era a designação pela qual eram conhecidos os trabalhadores migrantes, originários das Beiras, que sazonalmente se deslocavam das suas terras para o trabalho agrícola da ceifa ou da apanha da azeitona no Alentejo, no Ribatejo ou mesmo na nossa região.

Pois exatamente perto de nós, na Granja do Marquês, existem ainda vestígios da presença destes migrantes das décadas de 40 e 50 do século passado: são um conjunto de edifícios em ruínas defronte/ junto ao acesso principal à Base Aérea n.º 1 de Sintra onde alguns aí dormiam; existe também um edifício onde se realizariam bailes, que certamente permitiriam o convívio entre estes migrantes e autóctones.


 
Um interessante artigo cobre os Ratinhos no Alentejo em www.prof2000.pt/users/avcultur/luisjordao/almanaque/.../Page30.htm:

MIGRAÇÕES
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OS RATINHOS
 
Migrações eram deslocações de gentes dos seus locais de origem para outros, à procura de melhores proventos para desafogo da sua vida.
Hoje, lembrei-me de ir ao encontro dos ratinhos, trabalhadores rurais, vindos das Beiras, que demandavam a minha região na época das “assêfas”(1), período que abrangia sobretudo os meses de Junho, Julho e Agosto, no tempo em que os campos se doiravam de espigas e o Alentejo se intitulava o “celeiro de Portugal”.
  
 
Ceifas no Alentejo – Imagem de marca de um restaurante típico de Aveiro.
 
Lembro-me muito bem de os ver nas décadas de quarenta e cinquenta do século passado, formando “camaradas”(2) que se distribuíam pelas herdades dos grandes latifundiários, conforme já fora combinado, antecipadamente, entre aqueles e o respectivo manageiro, seu representante. Eram homens simples, laboriosos, humildes, francos, fraternos, pobres de bens materiais, mas ricos de valores éticos e comportamentais. Viajavam de comboio até Ponte de Sor e, se o contrato não se formalizara com transporte, iam a pé para os montes de acolhimento, só descansando para consolar o estômago com bocados de broa e vinho envinagrado.
Ao passarem pelas Galveias (minha terra), formavam colunas ao descerem a estrada macadamizada até ao alto da Azinhaga de Avis, embrenhando-se depois por caminhos de pé posto. Por vezes, surgiam alguns cachopos mais atrevidos que, com o intuito de os ridicularizar, diziam:
– Ratinhos da Bêra,
Cómim pão e dêxam a farrenhêra!
                        e
– Ó ratinhos, rátim o pão,
Rátim o quêjo e o focinho do mê cão!

Eles, serenos, não lhes ligavam ou, a rir, respondiam-lhes:

– Olhem que não!
Comemos a farrenhêra e dêxamos o pão!
                         e
– Somos ratinhos, ratamos o pão e o quêjo,
E às meninas, pedimos um bêjo.
Chegados aos montes, ocupavam as camaratas que lhes estavam destinadas, arrumavam os sacos com os poucos haveres que traziam e, enquanto descansavam, esperavam pela papança a que ferravam o dente para enfiar na tripa. Alguns dos mais velhos garganteavam lamentações sobre o raio da vida que lhes coubera.
Assim que o sacristão do céu acendia as primeiras estrelas, iam deitar-se em cima de esteiras de bunho e, cansados, dormiam a sono solto. No dia seguinte, antes do Ti Manel(3) nascer, estavam preparados para enregar a safra.
Habitualmente, os ratinhos comiam e bebiam por conta dos lavradores à “boca livre”(4), cujos comeres, substanciais, à base de feijão frade, feijão catarino, grão, batatas, sopas de pão “todo um”(5) e bóias de toucinho e enchidos de porco, eram levados por um criado da lavoura designado por mantieiro. Sendo assim, recebiam pouco dinheiro que forravam para governo da família. Porém, a maior parte das “camaradas” trabalhava a seco, isto é, só por dinheiro, sendo responsável pela sua fraca mantença, não abdicando cada um dos seus membros, de poupar, poupar, chegando até à sovinice.
Normalmente, as “assêfas” começavam pela aveia, depois o centeio, a cevada e por fim o trigo.
Era um trabalho árduo! Feito de sol a sol, debaixo de um calor tórrido, desempenhado corajosamente, encharcava-lhes o corpo de suor e, eles, com ansiedade, esperavam, de quando em vez, a vasilha de água que emborcavam com sofreguidão, para se dessedentarem. Mesmo assim com o sol em brasa, algum dos mais afoitos interrompia o trabalho, erguia a cabeça e, com voz vibrante, desabafava:
Fui ao livro do destino,
Minha sorte procurar.
Em todas as folhas li,
Que nasci p`ra trabalhar.
Chegados ao pôr-do-sol desapegavam do trabalho e, se as noites estivessem quentes, estendiam uma manta sobre o restolho e ali mesmo se entregavam a Deus para que lhes desse um santa noite e forças para o dia seguinte.
Concluídas as “assêfas”, faziam as contas. Desta vez, o manageiro oferecia uma boa pinga, cujo efeito se notava na algazarra que alvoroçava os montes por meio de cantos, choros, gritos, agradecimentos e vivas.
No dia seguinte, tocava a reunir e faziam-se ao caminho do regresso. Chegados a casa, tinham caloroso acolhimento, sendo recebidos com gritos de júbilo e lágrimas de saudade.
As minhas raízes ruralista e campesina de que me orgulho e nunca esquecerei, levaram-me com este pequeno texto, a perpetuar o trabalho destes homens “d`uma cana” (6) que, de pé firme e mão vigorosa, ceifavam o pão que nos matava a fome.
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(1) – as ceifas ● (2) – Ranchos ● (3) – Sol ● (4) – Barriga cheia ● (5) – Escuro ● (6) – Rijos

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